10 março, 2008

Terminal

Era tarde da noite, se me concentra-se poderia escutar os mais profundos demônios. Se fechasse meus olhos. Bastaria? - Um silogismo completo, a premissa antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão -, vou subir naquele ônibus, vou me disfarçar com os fones de ouvido e escutar Roxete.

Se não VOCÊ, então quem? Se não AGORA, então quando? – a interrogação corre junto de minhas enzimas, a resposta talvez esteja em outra língua, eu não consigo nem perguntar.

Sentei no mesmo acento desconfortável de sempre – o motorista já conhecia aquele meu ar de prepotência, ele me faz ser obrigada a atuar mais. Preciso mudar de roteiro, quem sabe treinar mais em frente do espelho -, era o ultimo da fila à esquerda, era possível espalhar minhas pernas e ter uma visão privilegiada de todo redor. A janela estava embaçada.

Cerca de três acentos antes do meu estava uma mulher fazendo tricô – agora faltava pouco pra terminar, acredito eu. As linhas emaranhadas como em uma coreografia já davam forma ao blusão de lã azulado -, suas afeições eram ariana, sentia em sua presença algo majestoso, mas, acredito que sua rotina era esfregar chão. Roupas surradas, sacolas plásticas, olhar cansado e rugas espalhadas faziam seu figurino de cada dia.

Ela é uma mãe dedicada e carinhosa. Usa a água sanitária e a vassoura como instrumento – ela precisa trabalhar, colocou seu filho em uma escola privada, sonha com um futuro melhor, doa-se de completo. O Dr. em frente ao nome do filho realmente ficara muito bonito. Mas, algo a preocupa.

Apesar de ter conseguido pagar pelo bom ensino do filho durante tanto tempo, ela sabe que não conseguira bancar uma faculdade. A única esperança é uma universidade federal, mas, sabe que não será nada fácil. Cotas. São elas. Na opinião desta exausta consciência materna é uma injustiça.

Tento escutar melodias, no intuito de não prestar atenção no que meus olhos enxergam. Isso esta ficando cansativo. Só quero chegar em casa e deitar no chão.

Uma vida inexistente me possui toda e me ocupa como uma invenção – não posso ignorar a presença daquele garoto que está sentado do outro lado do ônibus, praticamente ao meu lado.

Suas roupas de marca dão à impressão que não esta sob o mesmo céu que os demais, o Ipod que esta em suas mãos me faz pensar na possibilidade dele ser um bom partido – o cabelo bagunçado e o sorriso no canto da boca confessam, me desperta uma vontade de mudar de acento e perguntar qual o seu signo. – O que será que ele está escutando?

Apesar da sua criação sofisticada, a mordomia e toda a atmosfera burga em que sempre viveu, seus pai o tratam de forma madura desde sempre. Ele não quer mais andar nesse transporte, talvez ele nem me note aqui. As melodias fazem um bom trabalho com ele.

Talvez seu nome seja Caio, Felipe, Juliano ou Douglas. Ele tem cara de Eduardo.

Ele está revoltado que eu sei, acredito que o jeito que seus olhos se movem com tamanha indignação e desprezo pelo rapaz lá da frente não seja algo pessoal.

Arrisco a dizer que ele já tentou mais de três vezes uma universidade federal – quando conseguir, ele deixara de passar pela roleta e de pagar passagem. Ele terá um Audi. Será que consigo carona? -, o tempo não esta fazendo bem para ele, como se não conseguisse ver um negro em sua frente. Cotas. São elas.

Ele está preste a atacar. A lei dos mais fortes de nada adiantará.

E agora eu sei como Joana d'Arc se sentiu, enquanto o fogo queimava seu perfil romano, e começava a derreter seu discman.

Consigo ver o rosto do rapaz da frente graças ao reflexo involuntário da janela. Não que seu cabelo seja ruim, não que suas roupas baratas sejam um problema, não que a voz de seu estomago peça por comida e nem pelo fato dele ser um afro-descendente. Nada disso me faz pensar que ele não seja digno de entrar em uma universidade.

Ele tem um aroma de direito, talvez queira ser advogado. Não vou lhe perguntar onde seus pais se encontram. Posso não gostar da resposta.

Ele parece tão perdido quanto eu – a única diferença é que não tem um fone de ouvido para se enfeitar -, a passagem pode ficar mais cara.

Seus braços são fortes – carregar livros pode ser tão bom quanto freqüentar uma academia e vestir uma suplex.

Sei que ele está tentando entrar em uma universidade federal, sua vida depende disso. Mas, não sinto que ele entrará por causa delas – cotas – algo me faz pensar que ele não precisa disso. Mas, seria justo que seus outros ‘irmãos de pele’ sofressem tamanho preconceito e fossem abstraídos da massa intelectual afirmada em nossa tão 'idolatrada pátri gentil', só por não terem condições de um ensino mais adequado, aliás um ensino que eles realmente merecessem?

Aumentei o volume.

Eu não passo de um pequeno léxico de palavras incompreendidas.

Isso tudo me deixa com nervos frangalhos. Sei que para entrar em uma universidade federal não basta ser boa. Preciso ser a melhor. Não posso pensar muito, preciso agir mais. Tem muita gente na minha frente.

Algo me faz sorrir aliviada. São elas. Cotas.

Todos os santos, Jeová e afins já foram convocados, tenho cerca de 10 messes e 4 dias para me preparar para a batalha do século. Vestibular. Algo me diz que haverá muito sangue – os mortos enterraram os mortos.

Já mandei fazer minha fantasia de Pocahontas, irei fazer a prova de pés descalços e com uma trança embutida. Cotas. São elas. Ouvi dizer que também valem para os indígenas.

Nenhum comentário :